15 dezembro 2014

Araribóia. E de como Niteroi se chama Niteroi.


Cumpridos os objectivos que me levaram ao Rio de Janeiro e sem que primeiro desfrutasse de alguns dos locais mais icónicos da cidade maravilhosa, eis-me, num sábado de manhã, na Praça da Candelária a umas centenas de metros da estação das barcas. Ali, naquela praça tristemente célebre pelos massacres de Julho de 1993, colhi as últimas e preciosas informações que me haveriam de conduzir, sem percalços de maior, até Niteroi – a cidade que se espreguiça em frente ao Rio de Janeiro do outro lado da baía de Guanabara, onde pretendia visitar um familiar. 
“Se vai para a zona de Icaraí, o melhor mesmo, é apanhar a barca que se dirige para a praça Araribóia”, avisou uma última vez o meu informador. A meu pedido ainda soletrou duas ou três vezes a palavra “Araribóia” para que a pudesse memorizar com um mínimo de segurança.
Enquanto percorria o trajecto até à estação das barcas lá ia repetindo incessantemente e em silêncio a misteriosa palavra (Araribóia, Araribóia...), não fosse o esquecimento levar-me a destino diverso daquele que pretendia.
Ao contrário do que a designação "barcas" pudesse sugerir fiquei mais aliviado quando me vejo dentro de uma embarcação de envergadura bem avantajada e com uma comodidade francamente aceitável.
Uma vez chegado ao destino e ultrapassado o bulício da saída, dou comigo no exterior da gare marítima. Paro por uns segundos e perscruto por uns instantes a irrequieta avenida onde tudo parece confluir. Ao descair o olhar um pouco para a esquerda, reparo (quase em frente) numa estátua com cerca de três metros de altura em cima de um pedestal com idêntica envergadura. O meu olhar prende-se, imediatamente, à estátua e fixo-me nela enquanto me aproximo. 
Quase tudo naquela estátua contrariava a iconografia que conhecia: uma robusta e pujante figura de feições índias, semi-nu (apenas uma tanguinha a tapar as suas “vergonhas”), um colar de contas com a cruz de Cristo ao pescoço e uma virtuosa e impressionante pose majestática”. 
Não, os nossos heróis guerreiros não são assim, são muito mais formais e sempre representados em majestosos uniformes com soberbas ombreiras, espada à cinta ou bordão generalíssimo, lautas cabeleiras encimadas por coroa ou chapéu imperial. Tamanha nudez e despojo majestático contrastavam, definitivamente, com os arquétipos que havia assimilado...
Absorto no meu espanto e não de todo refeito da surpresa de tão estranha simbologia, mal reparo no jovem carioca que solícito se aproxima e oferece os seus préstimos: - “Está admirando nosso herói”? Sem tempo sequer para esboçar qualquer resposta, já o meu interlocutor rematava: “esse aí, é o Araribóia e esta praça aqui ao lado é a praça Araribóia”. Esboço um pequeno sorriso na sua direção para agradecer a solicitude: - “Ah, sim!?... muito obrigado pela gentileza da informação”. 
O meu sotaque acabava de me denunciar: - “Ah, você é patrício, vem de Portugal?”. Não esperou por mais para desentorpecer aquele jeitinho, bem brasileiro, de familiarizar à primeira vista: - “Então se você é patrício vou contar para você a história de Araribóia”. E foi assim, naquele linguajar doce e melódico, que fiquei a saber da história de Araribóia, cujo nome ouvira pela primeira vez uma hora antes na praça da Candelária.
Araribóia era um chefe índio, da tribo dos Tupis, que viveu em meados do séc. XVI quando os portugueses, algumas décadas após a sua chegada ao Brasil, tentavam consolidar a sua presença naquele extenso território e neste caso concreto na zona da baía de Guanabara. Por rivalidade com tribos vizinhas, Araribóia e a sua tribo decidem apoiar os portugueses quer sobrepondo-se aos outros nativos quer contra as expedições francesas, também elas, muito interessadas naquelas terras. Garantido o domínio, os portugueses haveriam de cumprir o prometido ao chefe Araribóia por “seus tão grandes e prestimosos feitos”, com ele haverão de repartir tão importante espólio, as terras em redor da baía de Guanabara.
Enleado no pormenor histórico e deliciado com a cantilena do narrador desperto na fase final da narrativa: - “E aí, os seus patrícios portugueses cumpriram a sua palavra. Sim seus patrícios foram de palavra. Em troca da ajuda de Araribóia para expulsar os outros índios e os franceses lhe deram uma terra para ele governar. E a terra que lhe deram para governar foi essa aí de Niteroi. Foi ele que fundou essa nossa cidade de Niteroi”. 
Embevecido pelo implícito elogio ao nosso povo (“gente de palavra”) devo ter deixado escapar um breve brilhosinhos nos olhos, imediatamente aproveitado para refinar a história que acabara de me contar: - “... assim se passaram as coisas. E agora, você sabe que quer dizer Niteroi na língua Tupi, a língua dos índios daqui?”. 
Nem esperou que lhe manifestasse o meu desconhecimento da língua Tupi e antes que pudesse mesmo conjecturar qualquer epílogo, rematou com indisfarçável deleite naquele vernacular e arrastado tropicalismo: - “Niteroi, na língua Tupi, quer dizer terra lamacenta. Agora, veja só que merda de terra foram dar para ele governar”...

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